15.6.10

O busto, o elmo e o gorro





"Suponhamos que temos diante dos olhos um busto de bronze e o elmo de um guerreiro, do mesmo período histórico. (...) o busto e o elmo são duas formas diferentes que têm uma premissa comum: a cabeça do homem.


O artista que modelou o busto pensou que a cabeça do homem é bela porque é a parte mais nobre do corpo humano, aquela que em mais alto grau reflete e revela a perfeição ideal de Deus. O artesão que lavrou o capacete pensou que a cabeça é a parte mais importante, vital e delicada do corpo humano, aquela que merece em mais alto grau ser protegida (...).


Para o artista que modelou o busto, o valor de uma cabeça é estreitamente ligado à semelhança, para o artesão que forjou o capacete ele é praticamente independente desta. (...) Mas também o artesão sabe que a forma do elmo medeia uma relação entre coisa e ambiente: só que para ele o espaço não é uma abstração geométrica, uma perspectiva constante e imutável, mas sim a dimensão na qual um homem vive e age (...).


O busto nasceu da idéia da contemplação, o capacete, da idéia da ação. (...) A forma do busto é naturalista porque nasce da consideração da figura humana como um aspecto, o mais alto aspecto, da Criação. A forma do capacete, embora aparentemente abstrata, é de fato realista porque considera o homem na sua realidade, no tempo e no lugar de uma circunstância bem precisa. (...) Para o autor do busto, tudo é já criado, já está no espaço, e ao artista não se permite
senão imitar ou repetir. Para o autor do elmo, a série dos objetos é ilimitada como a das ações humanas; aliás, há uma correspondência tão estreita entre as ações e os objetos que são as primeiras que determinam ou criam os segundos.


A prória objeção comum sobre a pura esteticidade do busto e a pura praticidade do elmo se revela inconsistente: todos estamos de acordo em reconhecer que a forma do elmo é bela, e o é porque responde de modo preciso e exaustivo a uma função. Se o elmo, como às vezes ocorre, fosse excessivamente carregado de ornamentos, talvez cinzelados por um grande mestre, poderíamos admirar as esculturas mas consideraríamos igualmente que a forma do elmo é equivocada, ou feia, porque não corresponde à função, a menos que a função específica seja, neste caso, "fazer bonito" no torneio. Portanto, a idéia de função nos serve de unidade de medida da qualidade estética da forma do elmo, do mesmo modo como a idéia da observação ou da contemplação nos serve de unidade de medida da qualidade estética do busto: só que a idéia de função implica a de ação, enquanto a idéia de contemplação implica a de imobilidade.


Agora, reflita-se: também um gorro, como o elmo, é feito para defender a cabeça, mesmo que seja apenas do frio; pressupõe essa idéia e tem um fim estético enquanto visa a embelezar ou a aumentar o prestígio da fisionomia humana. Onde faremos incidir a distinção entre o que é arte e o que é prática, entre o que tem uma qualidade estética e o que não a tem (...).


Eu proporia que desistíssemos daquela distinção ou que nos ativéssemos à hierarquia tradicional, para a qual o gorro tem um valor estético inferior ao do elmo e o fabricante de gorros, na escala social do artesanato da época, ocupa um grau mais baixo que o do fabricante de a armas, o fato é que o elmo está ligado a ações que, sobretudo naqueles tempos eram consideradas entre as mais altas e gloriosas, entre as mais dignas do ser humano, e não se pode dizer exatamente a mesma coisa do gorro. Conclui-se daí que se a arte assim chamada pura transmite uma imagem do mundo, a arte assim chamada aplicada transmite uma imagem da sociedade e de seus graus e valores internos, e sobretudo das suas funções.


(...) Assim procedendo, com as melhores intenções de salvar os direitos da arte pura, demonstrariam aceitar o critério da função social como critério de avaliação estética."


Giulio Carlo Argan, Projeto e Destino (pág 115-117). 1955

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